O cinema senegalês passou a ter uma identidade própria a partir dos anos de 1960 e 70, com o surgimento de Ousmane Sembene e a escola de cinema de Dakar. Ousmane foi o primeiro a produzir um filme totalmente senegalês, “La Noire De…” de 1966, e é reconhecido como o pai do cinema africano pelo pioneirismo e pela abordagem crítica com a qual filmava. Sembene trouxe para seus filmes temas importantes para a sociedade senegalesa de sua época - e que se mantêm relevantes até a contemporaneidade - a exploração colonial, a corrupção, as desigualdades sociais, a condição da mulher e a busca pela identidade cultural. Alguns filmes produzidos pelo cineasta e que repercutiram ao redor do mundo são “Mandabi”(1968), “Xala”(1975) e "Moolaadé"(2004). A escola de cinema de Dakar foi fundada por Osmane em 84, formando cineastas que, em conjunto, conseguiram ultrapassar as barreiras continentais e tiveram reconhecimento internacional.
De maneira geral, não há predominância - mas uma variedade de temas comumente abordados. Entre os temas presentes nas obras do Senegal, se destacam aqueles que contam eventos históricos do país e questões políticas, narrativas cotidianas, narrativas sobre empoderamento feminino, narrativas que contam rituais e tradições do país, que exploram migração e diáspora, e narrativas mais poéticas e contemplativas - que se utilizam de metáforas e elementos visuais para transmitir, sem o uso de palavras, emoções para o espectador. A enorme quantidade de temas e perspectivas reflete a riqueza cultural e as preocupações sociais do país.
Em “La Noire De…”, Sembene conta a história de Diouana, uma mulher senegalesa que é chamada para trabalhar de babá para uma família na França e se torna escrava doméstica dos patrões. Ao contar a história pela perspectiva feminina e se utilizar da narração em over, o diretor aproxima o espectador da situação e faz com que este sinta a dor de Diouana, assim como seu processo de compreender a própria condição como prisioneira num país estrangeiro.
A temática da escravidão é muito bem explorada e desenvolvida durante a uma hora de filme, trazendo uma realidade muito crua para a tela e trazendo um final trágico e chocante. Ousmane consegue mostrar o contraste entre a vida que Diouane levava em Dakar, e a que viveu na França. Da mesma maneira, ele constrói a relação de cada um dos membros da família branca em relação a ela fazendo com que estes representem, tanto juntos quanto isoladamente, os efeitos da colonização francesa e do racismo naqueles dias.
A fotografia e a mise en scene no longa servem, principalmente, para aumentar o efeito dramático - nas lembranças, o contraste é menor, há menos foco em objetos específicos e a fotografia se mantém em movimento, enquanto na vida do dia a dia, o contraste é alto, existem diversos planos detalhes e cenas focadas unicamente em locais sujos da casa, louça para lavar, etc, e a fotografia é menos ousada, mudando minimamente durante o decorrer das cenas ali ambientadas. Alguns ângulos ploungee em cenas que mostram Diouana sendo subjulgada e desvalorizada, e planos mais fechados que revelam o sofrimento da mulher foram ótimas escolhas e, muitas vezes, substituem até mesmo algumas falas.
Parte dessa construção tem a ver com a linguagem cinematográfica de Ousmane, que é firmada numa abordagem realista e engajada em pautas sociais, e as referências estéticas do diretor. A crítica nos filmes de Ousmane se inicia de maneira sutil e tem uma progressão, tanto de ritmo quanto de narrativa, que prende o espectador. Sembene também se utiliza de metáforas visuais - como na cena final de "La Noire De…", onde vemos a criança usando a máscara de Diouana - e se apoia muito nas expressões faciais e na linguagem corporal de seus personagens, sempre escolhendo atores capazes de segurar a dor sentida pelos protagonistas e transmiti-la para a tela. De maneira geral, o diretor faz com que seus filmes sirvam como ferramentas de conscientização, transformação e resgate da memória coletiva sobre um período histórico no Senegal.
O filme também contém muitos elementos e signos da cultura senegalesa. A trilha sonora, composta por músicas tradicionais senegalesas, conecta Diouana a sua terra natal, ambientando o filme. Os trajes tradicionais vestidos pela mesma e sua família no Senegal também são importantes para a narrativa, principalmente quando colocados em contraste com as roupas que esta precisa usar na casa dos patrões franceses, constantemente apagando parte de si. Por último, mas não menos importante, o artesanato e as peças de arte senegalesa que aparecem em algumas cenas servem para reafirmar a riqueza da tradição artística do país - e claro, o filme não seria o mesmo sem a máscara de Diouana e seu peso simbólico.
"La Noire De…" aborda aspectos sociais e políticos do Senegal, focando principalmente nas críticas ao colonialismo e neocolonialismo, além de trazer uma reflexão sobre perda de identidade e a alienação causada pelo etnocentrismo, e denuncia a realidade de racismo e desigualdade social de maneira escancarada. Por fim, Sembene também discute sobre o ganho de consciência por parte do povo senegalês e a decisão de resistir e lutar contra a proliferação dessa realidade dali pra frente; a protagonista tem seu último ato de resistência. O longa fala sobre a importância da consciência política e do questionamento das estruturas de poder opressivas.
